Poderemos dizer, sem quaisquer hesitações, que o AngraJazz é um dos mais importantes festivais de Jazz nacionais, e a confirmá-lo estaria, se fosse necessária, a vigésima terceira edição que agora encerrou. O êxito do AngraJazz deve-se, em primeiro lugar, à persistência, assiso e sabedoria dos programadores, que souberam balancear, ao longo dos anos, o Jazz mais acessível e algum menos consensual, sem cair em facilitismos ou futilidades; rompendo os constrangimentos da insularidade. Mas o AngraJazz é mais do que um festival: contra todas as improbabilidades, o AngraJazz construiu algo de sólido e persistente, como é a Orquestra AngraJazz, uma das poucas grandes formações regulares nacionais, fundada há vinte anos: um dos orgulhos do quarteto que compõe a Associação AngraJazz.
Orquestra AngraJazz
E foi com a sua Orquestra que o Festival começou.
Não é fácil a vida de uma orquestra de Jazz numa pequena ilha do Atlântico, sem outras tradições que não as que foram pelos seus mentores construídas; e alguns dos meus leitores recordarão, talvez, como há alguns anos assinalei com tristeza um dos concertos sem um único solista. Pois em 2022 solistas não faltaram: se não contei mal, foram mais de vinte os solos tocados nas seis composições do concerto, por mais de metade da orquestra. É verdade que alguns dos solos não foram realmente improvisados, e outros serão ainda incipientes, mas o Braulio Brito, o Paulo Borges, o Paulo Cunha, a Antonella Barletta e o Rui Melo são nomes que se fizeram na orquestra e improvisadores dignos de nota. E é louvar também, a coragem de todos os restantes solistas – alguns deles muito jovens mesmo -, e este é decisivamente o caminho. O repertório recaiu sobre o hard-bop clássico, com Benny Golson, Lee Morgan e Dexter Gordon em destaque.
Um início de festival clássico, saboroso e competente.
Joe Dyson Quintet
Oriundo de New Orleans, o berço do Jazz, Joe Dyson é um jovem baterista com uma carga pesada da tradição, contagiada por uma religiosidade messiânica. Dyson invoca por diversas vezes os seus mestres, Alvin Batiste, Donald Harrison ou Nicholas Payton (a quem dedicou um dos temas), e o pai, o pastor Rev. Dr. J.C. Dyson – cuja voz surge por diversas vezes ao longo do concerto. Os samplers dos sermões do pai terão sido mesmo o que de mais acutilante o concerto teve, porque a sua música é bastante burilada, mesmo se intensa. Músicos muito jovens, mas eficientes, com nota alta para o saxofonista Stephen Gladney, propiciaram o que de mais genuíno e próximo da tradição o festival levou ao palco.
Vale a pena contar que, no meio do concerto, o baterista anunciou um convidado inesperado, pedindo a Ricardo Toscano, que tinha visto tocar nessa tarde num dos concertos do Jazz na Rua numa das lojas da cidade de Angra, para subir ao palco. E o saxofonista comportou-se como um verdadeiro membro da banda, adaptando a pauta (escrita para saxofone tenor) ao seu alto, e improvisando como um natural. No final do tema, o líder da banda confessava-se surpreendido: «You should be proud of this guy». Nós estamos orgulhosos!
Pedro Moreira Sax Ensemble
Escrevi sobre o disco que deu origem a este concerto, que foi votado pela crítica como o disco de Jazz nacional do ano 2021, e assisti a uma das apresentações públicas do projecto.
«Two Maybe More» nasceu de uma encomenda da Gulbenkian para um espectáculo de dança contemporânea em 2014 e, na origem, a peça foi composta para ser interpretada por coro e ensemble de câmara.
Sete anos passados, Pedro Moreira regressou à obra, transformando-a, e adaptando-a para um ensemble de oito saxofones e secção rítmica.
No jogo de equilíbrio instável entre pauta e improvisação de que a obra é feita, o que de diferente teve, o concerto de Angra, foi um ajustamento dos solos na (belíssima) escrita, na própria disposição dos protagonistas, nos contrastes tímbricos e nos contrapontos, que os tornaram evidentes, naturais, num entrosamento perfeito. Todos os músicos sem excepção solaram e, se poderia fazer notar um ou outro, e seria talvez injusto, eu gostaria de apontar apenas o solo final do jovem Bernardo Tinoco, que (como se diz nas revistas cor-de-rosa) arrasou!
Mas eu gostaria de referir dois outros músicos, já que a secção rítmica não está nomeada no nome da banda («sax ensemble»): Mário Franco e Luís Candeias. Se Mário Franco se fez notar por impetuoso e sanguíneo, impelindo a banda, Candeias foi a âncora e o leme, o coração e a orelha, invisível e omnipresente, eficiente, ora silente ora explosivo, servindo a música com o rigor de um cirurgião.
Todos os músicos concordaram que este foi o mais bem-sucedido concerto do ensemble, e a satisfação estava-lhes estampada nos rostos, e naturalmente de Pedro Moreira. E, numa rara concordância entre público, crítica e músicos, este foi um dos mais aplaudidos concertos do festival.
Samara Joy
A segunda noite terminou com a jovem estrela Samara Joy. A noite da cantora é sempre um compromisso e um risco, e nós sabemos quantas vezes as cantoras substituem o Jazz pelo espectáculo, na (mera) interpretação de standards.
Samara Joy reside nesse/desse conflito/compromisso, no fio da navalha, na exposição que é própria da diva. Ela é uma cantora muito jovem – 22 anos - e, mesmo se destaca de entre as (os) demais, pelas suas capacidades vocais - com uma amplitude tímbrica impressionante - e pela entrega e generosidade. Faltar-lhe-á ainda, talvez, a personalidade que só o tempo concede.
Mas há algo nela que parece adivinhar essa ambição (de personalidade), e que esteve presente na adaptação vocal do solo de Fats Navarro em «Nostalgia», na apropriação jovial do repertório de Betty Carter ou Abbey Lincoln, ou na interpretação de um tema repescado de um clássico dos anos 50 popularizado por Nancy Wilson, «Guess Who I Saw Today», que me sugeriu, no patético abandonado, Cecile McLorin Salvant.
Banda europeia, competente, com o contrabaixo de Mathias Alamane em destaque.
Despretensioso e genuíno, um concerto contagiante, capaz de reunir consensos e muito aplaudido pelo público, com motivos.
Belmondo Quintet
Dois nomes maiores do Jazz europeu, Lionel e Stephane Belmondo são dois veteranos. Curiosamente a sua música é muito marcada pelo Jazz norte-americano tendo, depois de tocar com Yusef Lateef em 2005, ganho em densidade e espiritualidade.
Hard-bop intenso, como disse, espiritual, com explosões protagonizadas por Marc Miralta, muito herdadas da música desse período, que remete para a catarse de John Coltrane, e a que haverá apenas a apontar algum excesso em solos muito longos, que o virtuosismo dos protagonistas concedia.
Banda muito equilibrada e coesa para um concerto denso e generoso, com um repertório inspirado em Yusef Lateef e Wayne Shorter.
Guillermo Klein Y Los Guachos
A música de Guillermo Klein situa-se nos antípodas dos Belmondo. Ele é basicamente um compositor que, na herança da forma de Ellington, escolhe os seus instrumentistas com o rigor e a precisão de um relojoeiro. E eles são nada menos que Miguel Zénon, Bill McHenry, Chris Cheek, Jeff Ballard, Diego Urcola ou Wolfgang Muthspiel, proeminentes executantes e improvisadores, que o acompanham há mais de duas décadas (e isso dirá muito do respeito mútuo).
Música cerebral, que tanto se inspira em Astor Piazzolla como em Wayne Shorter, ela vive dos detalhes, de uma imensa riqueza harmónica, na relação conflituosa entre a composição e a improvisação de que é feito o Jazz; exemplar também na relação colectivo – individual que é também própria do Jazz e que o engenho de Guillermo Klein promove e provoca e que o decateto que lidera cumpre, ora observando a pauta, ora a questionando, ora improvisando.
O repertório percorreu a música dos Los Guachos, entre os clássicos «Burrito Hill» e «Artesano» e o «Melodia de Arrabal», retirado do último CD, Cristal, dedicado a Carlos Gardel.
Música subtil e fecunda, luxuriante e irredutivelmente moderna. Um magnífico final de festa!
Jazz na Rua
Ao longo dos dias do festival, e na semana que o precedeu, o Angra Jazz promoveu também o Jazz na Rua, em diversos cafés e estabelecimentos comerciais da cidade de Angra do Heroísmo, com os TB Jazz Ensemble, o Joana Pacheco Group, o Toscano/Andrade Quarteto, e o Coelho/Fernandez/ Cunha Trio.
Leonel Santos
(Leonel Santos esteve no AngraJazz a convite do festival) |
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Guillermo Klein
Guillermo Klein y Los Guachos
Pedro Moreira
Orquestra AngraJazz
Pedro Moreira Sax Ensemble
Samara Joy
Joe Dyson
Belmondo Quintet
(Todas as foto por Rui Caria) |
Pela 20ª vez consecutiva, a Orquestra Angrajazz abriu mais uma edição – a 23ª – do festival que lhe dá nome. Tem sido bonito assistir ao crescimento e à maturação desta orquestra ao longo dos anos. E, se a apresentação da “Far East Suite” de Duke Ellington tinha constituído um episódio particularmente feliz na história mais recente da orquestra, os clássicos do jazz escolhidos para esta sua apresentação, que incidiram especialmente sobre o hardbop (Benny Golson, Lee Morgan, Sonny Rollins, Bobby Timmons e Dexter Gordon), com “Bye Bye Blakcbird” pelo meio e uma eletrificante leitura de Woody N’ You, de Dizzy Gillespie, a fechar, não terão deixado muito a desejar.
Para além dos próprios maestros Claus Nymark e Pedro Moreira, não havia solistas convidados este ano. Se um par deles pudesse ter contribuído para agitar um pouco mais os procedimentos, a verdade é que o trabalho de interpretação daquela série de temas (e arranjos) superiores do jazz foi tão bem conseguido que fez desta uma das atuações mais memoráveis da orquestra até então.
A primeira noite seguiu com Joe Dyson, baterista que lidera um quinteto de “meninos prodígios” a cujo aprumo técnico é impossível ficar indiferente. São músicos de elevadíssima proficiência – com “chops” para dar e vender –, cuja profunda enculturação, por contacto direto com vários mestres mais ou menos recentes do jazz, lhes ensinou exatamente o que deve esta música oferecer em palco.
Para além do baterista, um excelente tecnicista dotado de uma admirável pertinência musical, impressionaram-me mais particularmente o trompetista Stephen Lands e o contrabaixista Barry Stephenson, mas a doçura do som do saxofonista Stephen Gladney não deixou de encantar e o pianista Oscar Rossignoli sabia bem o que fazia e revelou-se extremamente eficaz no contexto específico deste grupo.
A segunda noite começou em alta com a apresentação do Pedro Moreira Sax Ensemble. A adaptação para oito saxofones, dispostos quase frente a frente, como se de dois quartetos de saxofones se tratasse, bateria e contrabaixo, da música de uma peça – “Two Maybe More” –, originalmente escrita para oito solistas de coro e ensemble de câmara, é, como o disco havia já provado, um verdadeiro sucesso.
Vários temas do disco tiveram de ficar de fora do concerto, mas Moreira evidenciou um cuidado na escolha de um repertório ao longo do qual foi deixando brilhar em improvisação cada um dos músicos do decateto, incluindo o próprio, o contrabaixista Mário Santos e o baterista Luís Candeias. E a verdade é que, ainda que alguns solistas tivessem brilhado mais do que outros, todos eles provaram ter coisas, e das boas, para nos contar, e bem!
No segundo concerto da segunda noite do festival, Samara Joy provou ser uma verdadeira relíquia do jazz vocal – uma cantora com um timbre de abençoada beleza, um espetro impressionante, uma afinação infalível e um controlo milimétrico do vibrato, por uso do qual (ao contrário de tantas outras cantoras) é capaz de elevar a capacidade expressiva do seu canto até um nível muito difícil de igualar. E o mais impressionante é que, para além de toda a sua proeza técnica, a força emocional da sua voz tem vindo a melhorar a um ritmo impressionante desde a sua aparição há pouco mais de dois anos.
O seu concerto no Angrajazz permitiu que nos sentíssemos perante uma estrela cujo ritmo de ascensão se recusa a dar qualquer sinal de abrandamento. O resultado foi um dos melhores concertos de jazz vocal do Angrajazz de sempre!
Tanto no que toca à qualidade musical propriamente dita como em termos de casting – a atuação de Samara Joy na sequência da do ensemble de Pedro Moreira –, a segunda noite desta edição do Angrajazz foi um verdadeiro sucesso!
Não tão interessante terá sido a atuação dos irmãos Belmondo. Com uma secção rítmica de reconhecível competência, os elos mais fracos do grupo acabaram por ser os próprios manos. O trompetista, para além das incompreensíveis palavras que dirigiu à plateia, pouco se esforçou para surpreender no seu instrumento; o saxofonista esforçou-se mais, mas também não chegou a convencer plenamente. Marc Miralta é, por natureza, um baterista surpreendente, mas, ironicamente, a sua constante tentativa de surpreender neste concerto acabou por roubar grande parte da própria surpresa que tanto se esforçou por nos oferecer. Há que reconhecer, no entanto, que a energia e a constante inquietação da sua abordagem, aliadas à notável robustez do contrabaixista Sylvain Romano, foram os ingredientes que mais contribuíram para afastar alguma monotonia que, de outra forma, poderia ter arruinado este concerto.
Los Guachos de Guillermo Klein é um coletivo cujo som parece prender-se com a localização específica de cada músico no palco. As três palhetas – Miguel Zenón, Chris Cheek e Bill McHenry! – constituem uma primeira camada, por vezes com uma série de subcamadas; os metais são a camada seguinte, com a camada rítmica constituída por um baixo, percussão e bateria (o enorme Jeff Ballard), localizada em linha reta na traseira do palco, a funcionar como o motor que sustenta e impulsiona os restantes músicos. E, como se tal não bastasse, emergia de quando em vez uma interessantíssima linha de conversação entre os dois músicos geometricamente mais afastados um do outro: o guitarrista Wolfgang Muthspiel e o pianista-líder. Com várias composições de Klein, mas também de vários outros membros da banda, para além de um tango de Carlos Gardel, o som deste grupo, indutor de uma espécie de alucinação (poli)rítmica coletiva, resulta numa experiência única, delicada mas musculada, meticulosa e sólida no arranjo, mas cheia de nuances e contemplando o devido espaço para deixar raiar alguns dos mais incríveis improvisadores do planeta.
É bem merecida uma palavra especial de reconhecimento para o técnico João Rita, que, tendo vindo a crescer a “ouvidos ouvidos” ao longo dos anos, nos presenteou em toda esta edição com uma exemplar qualidade sonora, tendo roçado a perfeição nos concertos de Samara Joy e Guillermo Klein.
Em jeito de balanço, esta foi uma das mais equilibradas e bem conseguidas edições de um festival que já não deixa qualquer dúvida de que merece (e tem tido) todo o carinho do público e todo o possível apoio institucional, seja este governamental ou privado. E é bom que se saiba que este acontecimento maior da vida cultural dos Açores e de Portugal já tem data marcada para os dias 4 a 7 de outubro do próximo ano. |
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